Fogo de Kamña
Chamamento de Kiña

Ana Vaz

é preciso sair da ilha para ver a ilha.Agradeço a referência trazida pela amiga e pesquisadora Poliana Pieratti que cita (à sua maneira) o livro de José Saramago O Conto da Ilha Desconhecida (Lisboa: Caminho, 1997).

É hora do fogo. E Kamña“Kamña, termo que vem do kiñayara, a língua do povo indígena Waimiri-Atroari, autodenominados Kiña, que habitam a região situada à margem esquerda do baixo rio Negro, nas bacias dos rios Jauaperi e Camanaú e seus afluentes, os rios Alalaú, Curiaú, Pardo e Santo Antônio do Abonari no que chamamos hoje de Amazônia brasileira. Kamña é o termo kiñayara para identificar os não-indígenas, ao contrário de Kiña que significa “a gente”, a nossa gente, ou seja, o povo Waimiri-Atroari.” (fonte: Egydio Schwade e Wilson C. Braga Reis, 1.º Relatório da Comissão Estadual da Verdade: O Genocídio do Povo Wamiri-Atroari (Manaus: Comitê da Verdade do Amazonas, 2012), 2. quer expandir a sua fogueira. O fogo de Kamña é pólvora, é lume, é brasa para uma fogueira sem contorno que faz arder a terra, que inunda aldeias, que dizima povos. A insaciável sede de Kamña continua ávida por esculpir desertos. Kamña quer carne, muita carne, vermelha e sangrenta sacrificando hordas de animais sagradosO ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, se refere à derrubada da floresta amazônica como um trunfo para que se possa “deixar passar a boiada” (sic), em referência ao projeto de terraplanagem da selva amazônica para a entrada dos latifúndios monoculturais do agronegócio e da pecuária.. Kamña luta em nome de um deus diabólico que nada mais quer do que ser eternamente deus pois acha que deus e “meu” são uma só coisa. Kamña, desde o “primeiro contato” (sic) com Kiña, trouxe consigo a fumaça de metal, a fumaça da epidemiaReferência a uma expressão de Davi Kopenawa: “As fumaças das máquinas e dos motores são perigosas para os habitantes da floresta. Trata-se de fumaça de metal, fumaça de epidemia. Jamais tínhamos cheirado tal coisa antes da chegada dos brancos. Nós somos outros [...] Nunca vivemos, como os brancos, em terras ardentes e sem árvores, percorridas por máquinas em todo lugar”. em Bruce Albert e Davi Kopenawa, A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), 309-310., a fumaça da bomba-que-faz-arder-por-dentro“Em junho de 1985, sentado na calçada em frente ao prédio da FUNAI, em Brasília, em companhia de dois Waimiri-Atroari, um deles perguntou ao professor Egydio Schwade: O que é que civilizado joga de avião e que queima o corpo da gente por dentro? E esforçou-se em explicar um fato que aconteceu numa aldeia onde morava muita gente amiga de sua família.” (Fonte: Egydio Schwade, Por que kamña matou kiña?, blog Casa da Cultura do Urubuí, 15 maio 2011. http://urubui.blogspot.com/2011/05/2000-waimiri-atroari-desaparecidos.html.).


A fogueira de Kamña não tem limites, não tem corpo próprio e quer-se expandir para além do que já foi o “esquartejamento de imensas áreas de terra – ainda hoje sob controle de algumas poucas famílias desde 1534 com instituição das Capitanias Hereditárias”Ana Paula Rocha, O Grande Muro entre Kamña e Kiña, blog Plurais. 20 outubro 2017. https://blogplurais.wordpress.com/2017/10/20/o-grande-muro-entre-kamna-e-kina/., primeira técnica de apropriação territorial das terras de PindoramaPindomara era o nome das terras do litoral Nordeste da América do Sul de acordo com os seus habitantes circa 1500: o povo Tupi-Guarani. pela Coroa Portuguesa.

 

Kamña domina técnicas de desaparecimento inenarráveis — faz desaparecer o que quer: rios, povos, florestas, bichos, corpos, estudantes, ativistas, araras, onças pintadas, crianças, arquivos, museus, comunidades… Tudo o que se põe no seu caminho, Kamña faz desaparecer. Inebriado pelo seu cartesianismo latifundiário, Kamña não alcança a compreensão de que, na verdade, nada desaparece. Tudo o que Kamña faz desaparecer, re-aparece por desterro ou desenterro, as coisas voltam para assombrá-lo.


Coro: E quem é Kamña? Kamña é fera sonsa. Kamña é fera que amansa. Kamña é desHumano. Kamña é desRazão. Kamña traz a inCivilização. Kamña é pólvora. Kamña é fuzil. Kamña é autoestrada. Kamña é pó branco que cai do céu e faz arder por dentro. Kamña é fogo posto. Kamña é fogo visto de cima. Kamña é napalm. Kamña é asfalto. Kamña é carona fácilBenito, anotação do desenho Kiña, Carona fácil. Escola Yawará, 1986 (Acervo da Casa da Cultura do Urubuí).. Kamña é maxi (bomba)Olindo Panaxi, anotação do desenho Kiña, Homens com fuzil, bomba [maxi] e escondidos. Escola Yawará, 25 de maio de 1986 (Acervo da Casa da Cultura do Urubuí)..

Kamña somos nós, habitantes deste deserto crescente chamado modernidade. No entanto, o drama mitológico primordialKamña poderia ser perfeitamente descrito com um dos cantos mais completos escritos pela vida-obra de meu pai, o compositor, artista e pensador brasileiro Guilherme Vaz que re-transcrevo aqui me permitindo algumas inserções: “A sociedade conservadora (de Kamña) é um erro do devir das espécies e simultaneamente a origem de todos os seus erros. Sem exceção. Seu objetivo capital é o de evitar o êxtase. Sabendo por instinto que é inflexa, tem na natureza o seu maior inimigo. Por isso, movimenta todas as forças contra ela. Como a natureza, por definição, não tem inimigos, essa é a sua maior audácia e o seu drama mitológico primordial.” (Guilherme Vaz, “Três ventos, dois vácuos e uma espada”, in Guilherme Vaz: uma fracção do infinito, ed. Franz Manata. Rio de Janeiro: CCBB, 2015). Acrescento que, sendo tudo natureza, a sociedade conservadora Kamña surge como algo absolutamente sobrenatural. de Kamña é que ele se encontra repetidamente com dois dos seus maiores e mais nobres inimigos: a Selva e xs Indígenas.

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respiro
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Era o fim da estação seca e caíam sobre o capô do carro as primeiras gotas da chuva amazônica. K. me pergunta: paramos nalgum lugar que lhe interessa filmar? Eu lhe digo: K., a única coisa que quero absolutamente filmar é a (autoestrada) BR 174, podemos fazer um desvio até lá? K. me olha e ri: claramente você não é daqui, pisa no acelerador e diz: a BR 174 é o nosso único caminho até lá. Eu, atônita, engoli em seco e disse: então começo a filmar agora.

No carro, a transmissão de rádio vai e vem, assim como a conversa com K. A chuva engrossa e silencia qualquer possibilidade de comunicação. Os vidros embaçam e mal conseguimos ver adiante. A BR-174 se estende por exatos 971 km desde Manaus até Boa Vista. A linha de asfalto recorta, com ondulações vertiginosas, a selva amazônica. É difícil segurar a câmera, os planos ondulam com a estrada. O som da chuva sobreposto ao motor do carro é ensurdecedor. Pego no microfone e coloco-o em cima do capô do carro.

As nuvens baixas atravessam a estrada e abrem um lampejo de luz. Aproveito a deixa e agradeço K. pela viagem, pela companhia e, sobretudo, por ter conseguido encontrar o senhor Egydio. Foram meses de busca, tentativas vãs de contatá-lo através das vias usuais de comunicação à distância (telefonemas, e-mails, mensagens virtuais). Nenhum sucesso. K. disse-me que só conseguiu encontrá-lo porque pegou o carro, dirigiu três horas na chuva até Presidente FigueiredoIronicamente, o nome da cidade seria uma homenagem ao ex-presidente militar João Figueiredo, mesmo que ele a tenha rejeitado logo antes de sua inauguração em 1981. ,sem endereço certo, e quando chegou viu uma bandeira vermelha numa pequena casa de madeira: só pode ser aqui. Saiu do carro e bateu palmas à frente da casa. E então ele veio, calmamente, com seus passos ternos.

Egydio Schwade, indigenista e educador, vive há mais de 30 anos às margens da BR-174. Ele transformou a sua casa em uma casa de cultura nomeada Urubuí, em homenagem ao rio que corre, caudaloso, paralelo à autoestrada. É na Casa da Cultura do Urubuí que estão guardados mais de 3.000 desenhos feitos pelos Kiña durante uma primeira experiência de alfabetização bilíngue, conduzida por Egydio e sua companheira Doroti Alice Müller Schwade, em KiñayaraO processo de alfabetização em Kiñayara implicava o aprendizado da língua dos Kiña pelos educadores e a co-criação de um grafia para a língua Kiña, até então exclusivamente oral. — sua língua-mãe — e em Português — uma demanda dos Kiña para a defesa dos seus direitos na língua-mundo de Kamña.

Dentro da biblioteca da Casa da Cultura do Urubuí, livros de apicultura, permacultura, biologia, pedagogia crítica e escrita indígena preenchem as prateleiras. Ao lado, sob uma parede verde, desbotada pelo tempo e a luz, um expressivo rosto indígena chora sob a BR-174 num cartaz do Movimento de Apoio à Resistência Waimiri-Atroari.

Antes de começarmos a entrevista, um grupo de biólogos vindos de Minas Gerais chega calmamente, todos vestidos de branco, como se estivessem dentro de um laboratório de pesquisa. Egydio e seu filho Maiká os levam até uma singela cadeira de cana, onde estão depositados ninhos de raríssimas abelhas da selva amazônica. Os cientistas, delicadamente, abrem a cana com uma pinça e dali extraem uma minúscula gosma amarela que depositam dentro de um frasco: ovos da abelha-rainha.

Na varanda da pequena casa de madeira, as mãos de Egydio retiram imagens de um pequeno álbum de fotografias: Aqui, é a Doroti com os nossos meninos ao lado da escola Yawará, eles frequentavam a escola como quase todos os habitantes da aldeia. Mulheres, homens, crianças e até bebês participavam da escolinha. Uma criança indígena sorri em primeiro plano enquanto, atrás dela, duas crianças loiríssimas sorriem ao lado de um grupo de crianças e mulheres indígenas. Em meio a uma trilha na floresta, um grupo de homens indígenas, rindo, aponta suas flechas em direção à câmera de Egydio. Aqui são os meninos da aldeia brincando com os seus arcos e flechas durante um passeio. Flechas de Kiña em direção à câmera-olhar de Kamña. Aqui, um outro Kamña que não trazia pólvora, fogo ou fuzil mas sim lápis coloridos, escuta e folhas de papel.

Egydio e Doroti Schwade foram enviados pela FUNAIFundação Nacional do Índio. em 1985 à aldeia Yawará do povo Waimiri-Atroari para conduzir com eles uma primeira experiência de alfabetização e restaurar a imagem degradada da atuação das instituições públicas na regiãoDesde o fim dos anos 60, os diversos enfrentamentos com o povo Waimiri-Atroari já vinham sendo alvo de críticas públicas em relação à atuação do governo na região.. “Após a campanha vitoriosa das diretas jáMovimento civil que reivindicava eleições presidenciais diretas no Brasil entre 1983 e 1984, trazendo primeiros sinais de uma futura transição do regime militar brasileiro. respirava-se ares de mudança por toda a parte. Todos sonhavam novos rumos para a Política Indigenista oficial”Egydio Schwade, Política Indigenista Oficial e Tentativa de Mudança, agosto 2020 (ensaio não publicado enviado por e-mail)., escreve Egydio Schwade relembrando a experiência vivida com os Kiña.

Chegando à aldeia Yawará, Egydio e Doroti levavam com eles anos de experiência na luta pelos direitos indígenas na região, assim como Tato, Tempo e Escuta. Inspiradxs pelo educador e pensador brasileiro Paulo Freire, no seu já célebre e fundamental A Pedagogia do OprimidoA pedagogia crítica de Paulo Freire é amplamente descrita na sua obra emblemática A Pedagogia do Oprimido (1.ª tradução para a língua inglesa publicada em 1970 e traduzida por Myra Ramos). O método, essencialmente decolonial, defendido por Freire é fundamentado sob princípios de aprendizagem coletiva através de co-elaborações entre professorxs e alunxs, não como “receptáculos de conhecimento”, senão como contribuintes ativos na fabricação de um conhecimento coletivo. A filosofia educacional de Freire foi usada, comentada e ativada por diversos movimentos de independência, desde os direitos indígenas até militantes dos direitos civis, nas Américas, na África e além., xs educadorxs fabularam sobretudo um espaço de trocas sensíveis com a comunidade da aldeia Yawará através de uma prática cotidiana de desenho.

O método Paulo Freire adotado por nós deixava todo o processo de alfabetização e produção de material sob a responsabilidade dos indígenas. As tarefas eram produzidas diariamente por eles, longe de nossa vista, na aldeia. No dia seguinte, eram complementadas e enriquecidas pelas conversas e correções em aula. Assim, criou-se uma reciprocidade sincera, apesar de ainda não nos entendermos em Kiñayara.

 

Uma índia escreveu ao lado de seu desenho: “A minha mãe não me ensinou a fazer rede.” A mensagem, em estilo telegráfico, foi descodificada na discussão em aula: a mãe morreu de sarampo muito cedo, depois de o pai ter sido morto na luta de resistência.Egydio Schwade, Política Indigenista Oficial e Tentativa de Mudança, agosto 2020 (ensaio não publicado que me foi enviado por e-mail).

A pedagogia de Paulo Freire adotada por Egydio e Doroti não premeditou a expressão dos traumas históricos vividos pelos Kiña. O método foi sobretudo um dispositivo capaz de criar as condições para tal partilha: horizontalidade, improviso e capacidade de escuta gerando, pouco a pouco, a possibilidade de fala, expressão e diálogo. A criação deste espaço “sem medo da liberdade” é a essência própria da pedagogia de Paulo Freire, que vê a educação sobretudo como “prática da liberdade”Paulo Freire, A Pedagogia do Oprimido (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987).. Nas palavras de Freire,

a educação autêntica, não se faz de "A" para "B" ou de "A" sobre "B", mas de "A" com "B", mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, originando visões ou pontos de vista sobre eles. Visões impregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicam temas significativosIbid..

É nesse contexto que surgem os desenhos dos Kiña como expressão subjetiva, tanto quanto objetiva, das suas experiências e de seu mundo, assim como, inesperadamente, um retrato radical de Kamña.

“O que é que Kamña jogou do avião e matou Kiña? Kamña jogou kawuni (de cima, de avião), igual a pó que queimou a garganta e Kiña logo morreu.” Com muito cuidado, procurávamos furtar-nos de início a qualquer curiosidade sobre essas questões. Sabendo que estávamos sob constante vigilância de quem estava ao serviço da ocultação dos crimesIbid..

Pesquisando o Arquivo Nacional, encontro uma série de documentos do SNI (Serviço Nacional de Informação)Aparelho criado logo após o golpe de estado de 1964 para vigiar e punir a sociedade civil, uma cópia conforme da CIA norte-americana. listando os nomes de Egydio e outrxs antropólogxs e indigenistas, como Darcy Ribeiro, enquanto participantes das reuniões da Pastoral Indigenista constantemente vigiadas por agentes infiltradosAgradeço à pesquisadora e curadora Ana Pato pela partilha atenta destes documentos.. Egydio olhou os documentos e respirou, sem surpresa ou inquietude.

O processo de alfabetização de acordo com o método Paulo Freire foi conduzido com autonomia dos Kiña. Iniciaram com desenhos, que dominavam de forma genial. Dos desenhos extraíram as letras e das letras as frases, finalmente, pequenos textos na sua língua materna. As tarefas eram elaboradas na aldeia. Na escola, eram postas a público, comentadas e enriquecidas de viva voz. Surgia assim toda a riqueza de sua terra: animais e vegetais, a sua visão de mundo e como tudo era celebrado em suas festas e ritos. Apareceu também, é claro, a sua história – Kiñayka = a História da nossa gente. Praticamente todos eram jovens ou crianças, todos sobreviventes de massacres bem recentes. E assim, começaram a revelar o que os militares fizeram contra o seu povo, durante a construção da rodovia BR-174, rasgando o seu território. E, no final das aulas, quase sempre a pergunta: “Por que civilizado = Kamña, matou Kiña = a nossa gente? Apiyemiyekî?” = Por quê?Egydio Schwade, Política Indigenista Oficial e Tentativa de Mudança, agosto 2020 (ensaio não publicado enviado por e-mail).

Ao lado de um desenho Kiña feito com traços fortes em preto, verde-folha e azul-céu, vemos duas malokas (casas indígenas), dois homens de pele vermelha e duas inchadas em roxo e preto acompanhas pela seguinte anotação:

Tikiryia“À margem esquerda (do rio Camanaú), Sudeste da Cachoeira Criminosa (Urtanuna na língua Kiña), onde se localiza hoje a Mineradora Taboca (do grupo empresarial Paranapanema), desapareceram pelo menos nove aldeias indígenas, segundo o estudo feito pelo Padre Calleri, em 7 de outubro de 1968, durante sobrevoos à serviço da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Esses grupos eram conhecidos pelos Kiña como Tikiriya.” (Fonte: Egydio Schwade, Wilson C. Braga Reis, 1.º Relatório da Comissão Estadual da Verdade: O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari (Manaus: Comitê da Verdade do Amazonas, 2012), 12. sumiu
Kamña chegou
TabokaTaboka ou Mineração Taboca S.A., empresa “que revolve o solo dos Waimiri-Atroari para extrair cassiterita, principal fonte de estanho, mineral usado na fabricação de latas para alimentos”. A empresa atua na região desde 1978 extraindo não só a cassiterita como também estanho, nióbio e tântalo. (Fontes: Ana Paula Rocha, O Grande Muro entre Kamña e Kiña, blog Plurais. https://blogplurais.wordpress.com/2017/10/20/o-grande-muro-entre-kamna-e-kina/, último acesso 4 novembro 2020. E o relatório Mineração em Terras Indígenas na Amazônia brasileira 2013 (São Paulo: ISA Instituto Socio Ambiental, 2013) 19, 31, 37. chegou
Tikiryia sumiu
Por quê?

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respiro
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Durante os meus 57 anos de indigenismo, foi a pergunta que mais fundo me calou no coração, escreve Egydio em correspondência eletrônica após a nossa entrevista. Os desenhos e interrogações dos Kiña tornaram-se um canal de comunicação, senão de terapia, sobre a violência de Kamña. Através de traços, gestos, palavras e silêncios, as técnicas de violência genocida de Kamña foram-se articulando ao longo do processo de alfabetização.

Já em dezembro de 1986, após menos de um ano desde o início desta prática experimental de pedagogia, Egydio e Doroti Schwade foram compulsoriamente expulsos da aldeia Yawará.

À noitinha do dia 4 de dezembro de 1986, eu havia justo espalhado pelo chão e a mesa da nossa casinha mais de uma centena de desenhos de bichos feitos na escola. Estávamos rodeados de boa parte da aldeia: rapazes e moças que fariam a escolha dos desenhos para o primeiro livro que os Kiña haveriam de publicar. Foi aí que encostou um carro da FUNAI. Era o encarregado da Área Waimiri-Atroari que veio nos retirar compulsoriamente. Só deu tempo para recolher, às pressas, as nossas coisas e embarcar. Já estava escurecendo. Quando me despedi do TuxauaNome Kiña para designar a liderança da aldeia., este, cabisbaixo e muito tristonho, apenas me disse: “Egydio, você, Doroti e CIMICIMI - Conselho Indigenista Missionário. “O Cimi é um organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que, em sua atuação missionária, conferiu um novo sentido ao trabalho da Igreja Católica junto aos povos indígenas. Criado em 1972, no auge da Ditadura Militar, quando o Estado brasileiro adotava como centrais os grandes projetos de infraestrutura e assumia abertamente a integração dos povos indígenas à sociedade majoritária como perspectiva única, o CIMI procurou favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural.” (fonte: “O CIMI”, site https://cimi.org.br/o-cimi/, último acesso 4 novembro 2020). A atuação do CIMI desde a sua criação em 1972 é fundamental na luta pela defesa dos direito dos povos indígenas. O conselho não prega a conversão ao cristianismo, mas o respeito às crenças e cosmovisões distantes de cada povo. fraco igual nós!”Egydio Schwade, Política Indigenista Oficial e Tentativa de Mudança, agosto 2020 (ensaio não publicado que me foi enviado por e-mail)..

Chegando ao fim do relato firme e trêmulo de Egydio, os cachorros latiam e o almoço já cheirava. O relato pedia silêncio. K. me olhava e dizia com olhos acho que agora é preciso respirar, vamos deixar o senhor Egydio descansar. Claro que sim.

K. e eu fomos tomar um café com tapioca no limite da cidade, à margem do rio Urubuí. Absortas pela intensidade e velocidade do rio, instalou-se o silêncio entre nós. Nada era mais forte do que as suas águas, os baixos reverberantes do seu fluxo. Nenhum alfabeto, toda a linguagem.

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Chamamento de Kiña

menyayakî henya? henya kepate
'Você está vendo?' 'Eu estou vendo!'
'piapiakepa!' - ampakepa yainîpî'
'Você está vendo isto?' - falou outro parente deleFragmento do “mito do jacaré” transcrito por Egydio Schwade a partir da explicação de um desenho (imagem) por um de seus alunos da Escola Yawará (1985/86). Relato enviado por correspondência eletrônica.

À tardinha, K. e eu levámos os desenhos para a varanda da casa, era preciso luz para ver os desenhos. Tentei diversas vezes, sem sucesso, fazer o foco sob cada uma das folhas de papel. As imagens fotografadas pareciam infinitamente distantes da realidade háptica daqueles desenhos: cor-de-rosa claro, relevo, quase rasgo, azul-arara, pó de grafite, jacaré em alto-relevo. Cada traço desenhado parecia quase atravessar a folha de papel, tamanha era a força, a intensidade do lápis contra a pele de imagemExpressão de Davi Kopenawa ao antropólogo Bruce Albert se referindo à impressão das palavras nos livros, árvores mortas: “Você desenhou e fixou essas palavras em peles de papel, como pedi. Elas partiram afastaram-se de mim. Agora desejo que elas se dividam e se espalhem bem longe, para serem realmente ouvidas […] Eu não tenho velhos livros como eles (os brancos), nos quais estão desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. […] elas jamais desapareçam. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas […] Não poderão ser destruídas pela água ou pelo fogo. Não envelheceram como as que ficam coladas em peles de imagem tiradas de árvores mortas”, inBruce Albert e Davi Kopenawa, A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), 64-66. braille sem alfabeto.

Kiña parecia irromper das folhas de papel. Ver, senão tocar, aqueles desenhos era de alguma forma também ver-se a partir de um outro olhar: relógios, estradas, carros, caminhonetes, facas, facões, rádios: soletra-se o alfabeto Kamña.

Agora, os desenhos Kiña nos olhavamAgradeço a lucidez da pesquisadora, escritora e cineasta Raquel Schefer que descreve no seu ensaio sobre “Apiyemiyekî?” (publicado no catálogo do Festival Black Canvas, México) esta dimensão da mutualidade de perspectivas neste encontro com os desenhos. A reflexão remete de imediato ao precioso livro de Georges Didi-Huberman O que nós vemos, o que nos olha — uma filosofia crítica, senão perspectivista, do ver.. E, sobretudo, irrompiam da página rumo ao toque. Vê-los realmente implicava tocá-los. Ou, nas palavras de Didi-Huberman, “ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência de tocar”Georges Didi-Huberman, O que nós vemos, o que nos olha, trad. Golgona Anghel e João Pedro Cachoppo (Porto: Dafne Editora, 2011), 11..

Estou aqui para ler as assinaturas de todas as coisas, desovas e sargaços, a maré que sobe, essa bota corroída. Verde-ranho, azul de prata, ferrugem: sinais coloridos. Limites do diáfano. Mas acrescenta: nos corpos […] Se podes meter os cinco dedos através, é um portão, se não é uma porta. Fecha os olhos e vê.James Joyce citado em Ibid., 9

Se agora os desenhos podem finalmente nos olhar, nos tocar, é porque enfim compreendemos que o que eles narram não é exprimível apenas pelos olhos. Se o fogo de Kamña é o fogo da luz, que tudo quer ver, que tudo quer revelar, a subversão Kiña é um jogo de espelhos: seguro o lápis-espelho para pintar-te um retrato, Kamña. O que olhamos nos olha.

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Post script

Um ano após a viagem à Casa da Cultura do Urubuí, fui convidada para falar sobre a pesquisa e fabricação do Apiyemiyekî? (2019), filme feito a partir desta viagem, num encontro virtual sobre arquivos, memória e subjetividade com um grupo de mulheres da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Quatro horas de fuso nos separavam enquanto as nossas respectivas telas de computador nos davam a ilusão de nos unirmos num encontro pequeno e dedicado. fruta pão (administradora do grupo) nos avisa: vamos assistir alguns minutos do filme e logo voltamos para conversar.

Cena de abertura: a sinuosa BR-174 em preto-e-branco filmada com uma câmera trêmula, dentro de um carro. Logo a voz de K. irrompe da imagem: Oi Ana, deixa eu te falar …. eu não sei se a sua pesquisa passa ou não de 1985 (ano que marca o fim oficial da ditadura militar no Brasil), mas eu acho que se ela passar o Egydio terá outras informações sobre o que aconteceu e as consequências disso… Porque é como se a ditadura não tivesse fim para estes povos e eles continuassem recebendo toda esta violência, esta carga violenta. É nesse exato momento que uma série de perfis desconhecidos invade o grupo trazendo as seguintes imagens: um jovem se filma enquanto uma mulher (que não vemos) performa uma felação fora do quadro, uma jovem seminua performa uma coreografia para a câmera, dois homens humilham um outro estendido no chão fingindo “revistá-lo” e por fim desfiles nazis, fuzis, metralhadoras, pornografias sem prazer e slogans eleitorais em verde–e-amarelo enquanto no chat ao lado a mesma frase se repetia: cadê o homem desta !@#$%& de conversa? As imagens eram acompanhadas por uma cacofonia ensurdecedora de sons que se sobrepunham silenciando qualquer entendimento. Atônitas, tornou-se impossível continuar.

Nos reconectámos logo a seguir tentando tatear, descrever, dar nome ao ocorrido. Trêmulas com as palavras, nascia um outro alfabeto. Balbuciante, desforme, delirante. No caderno, encontro as seguintes criptografias rasgadas contra a pele de papel: resistência, luta pela continuação da vida, contra a apropriação da vida, memória dos corpos, força histórica do rio, delírio, assombro, rio que invade a BR-174, uma perfeita ucronia.

Após o ataque cibernético, saí para conversar com um amigo. Era o fim do dia e o sol se punha gigantesco, sábio, inteiro. Ao contar-lhe o ocorrido, ele parou, pensou e disse-me: mas não seriam vocês — pesquisadoras da memória e do sensível — as hackers do latifúndio de Kamña?Agradeço ao amigo e cineasta Ben Russel por este omen.

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NOTAS
ANA VAZ

A filmografia crítica e especulativa de Ana Vaz (Brasília, 1986) apoia-se em colagens experimentais de imagens e sons para refletir sobre situações e contextos histórica e geograficamente marcados por narrativas de violência e repressão. O impacto do colonialismo e da ruína ecológica são os espectros que assombram os seus poemas fílmicos. Como prolongamento ou consequência dos seus filmes, a sua prática incorpora-se também na escrita, na pedagogia crítica, em instalações, programas de cinema e eventos efémeros.

 

www.vimeo.com/anavaz

BIBLIOGRAFIA

– Albert, Bruce e Davi Kopenawa, A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés (São Paulo: Companhia das Letras, 2016).
– Kucinski, Bernardo, K.: Relato de uma Busca (São Paulo: Companhia das Letras, 2016).
– Didi-Huberman, Georges, O que nós vemos, o que nos olha, trad. Golgona Anghel e João Pedro Cachoppo (Porto: Dafne Editora, 2011), 11.
– Freire, Paulo, A Pedagogia do Oprimido (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987).
– Rocha, Ana Paula, "O Grande Muro entre Kamña e Kiña", blog Plurais. 20 outubro 2017. https://blogplurais.wordpress.com/2017/10/20/o-grande-muro-entre-kamna-e-kina/.
– Schwade, Egydio, e Wilson C. Braga Reis, 1.º Relatório da Comissão Estadual da Verdade: O Genocídio do Povo Wamiri-Atroari (Manaus: Comitê da Verdade do Amazonas, 2012).
– Schwade, Egydio, Política Indigenista Oficial e Tentativa de Mudança, agosto 2020.
– Valente, Rubens, Os Fuzis e as Flechas: Histórias de Sangue e Resistência na Ditadura (São Paulo: Companhia das Letras, 2017).
– Vaz, Guilherme, “Três ventos, dois vácuos e uma espada”, in Guilherme Vaz: uma fracção do infinito, ed. Franz Manata (Rio de Janeiro: CCBB, 2015).

IMAGENS

Ana Vaz, Apiyemiyekî?, 2019. Fotograma 16mm transferido para HD, 29min.

CRÉDITOS

Ensaio escrito a partir da experiência de pesquisa e realização do filme Apiyemiyekî? dir. Ana Vaz, 29min, 2019.

AGRADECIMENTO

grupo lacuna aberta (PUC RJ), poliana pierati, ana pato, egydio schwade, ben russell, catarina boieiro, keila serruya.

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