Uma simples questão de escala

Brian Holmes

Uma famosa peça de ciência popular foi filmada há cerca de quarenta anos no Soldier Field de Chicago, não muito longe de onde vivo. A câmara está suspensa um metro acima de um casal que repousa sobre a relva; mas depois sobe dez metros, depois cem, mil, dez mil, e por aí adiante em intervalos de dez segundos, até que, em poucos minutos, chega ao limite do universo que conhecemos. Depois de um mergulho acelerado através de galáxias simuladas, a câmara pára, à distância de um metro, sobre a mão do homem, continuando depois a descer até aos dez centímetros, um centímetro, um milímetro, cem mícrometros, e segue em intervalos de dez segundos, explorando todas as técnicas de visualização da época, antes de conhecer os seus limites dentro do núcleo de um átomo de carbono. Hoje poderíamos dizer que teria chegado ao infinitamente replicado centro da terra. É possível que tenha visto este pequeno vídeo industrial realizado por Charles e Ray Eames para a IBM, com o título Powers of Ten.

 

O meu antigo eu não via grande utilidade neste tipo de exibição de virtuosismo, típica da ideologia da Guerra Fria: meios de comunicação matematizados apresentando um espetáculo de poder imperialista, mantidos longe dos laboratórios militares onde os componentes essenciais do espetáculo — particularmente satélites orbitais — eram inventados. Eu costumava afastar-me deste tipo de ciência. Mas isso foi antes de descobrir a Hipótese de Gaia.

 

Começou por acontecer de um modo totalmente afectivo, bem longe no hemisfério sul, sem qualquer matemática envolvida, junto às margens de um rio transbordante. Segui um caminho de terra até à beira da água, e o sol rasante brilhava sobre aquilo que poderia ter sido um campo agrícola, com um celeiro submerso no horizonte. Estava exausto, mas a margem do rio estava enfeitada por ervas que rebentavam timidamente, e o inverno insinuava-se docemente como a primavera. Os caminhos trilhados da planície aluvial não passavam de superfícies líquidas cintilantes, como um labirinto de terra traçado num espelho de céu. O que se tornou palpável — e onde praticamente se podia nadar, apesar da lama — foi uma cosmologia terrestre, embora faltassem anos até que aprendesse a dizer tal expressão. O ritmo sazonal do rio encontrou-se com o meu, abrindo assim um novo conjunto de caminhos.

 

O grupo Critical Art Ensemble convidara-me para esta viagem ao longo do Rio Paraná na Argentina, para um projecto organizado em grande parte por um artista, advogado e activista ambiental chamado Alejandro Meitin, sob o título de Watersheds as Laboratories of Governance. Entre os eventos e excursões, eu e o Alejandro continuámos as conversas que havíamos começado alguns anos antes através de email, sobre a infraestrutura capitalista, poder popular e ecologia da bacia hidrográfica. Ele e os seus colaboradores locais tinham conseguido vencer um processo legal internacional contra a Shell Oil ao utilizar imagens de satélite para provar os danos que um derrame de petróleo provocara nos mangues locais. Tinham também conseguido atrasar a construção de uma enorme ponte no estuário do Rio del Plata, até que o projecto foi abaixo com o colapso económico de 2001. Eu não tinha qualquer conhecimento, competência ou experiência, mas já estava intrigado pelas possibilidades escalares através da minha participação no movimento contra-globalização, e pouco depois comecei a explorar os sistemas de mapeamento online, especialmente os de open-source. Alguns anos mais tarde, começámos a trabalhar num mapa duplo das bacias do Mississipi e do Rio del Plata chamado Living Rivers/Ríos Vivos — uma “colaboração inter-bacia”, combinando técnicas SIG (Sistemas de Informação Geográfica) com bastante trabalho de campo nos nossos respectivos territórios. Hoje continuamos a colaborar nos projectos da Casa Río, dentro do âmbito mais alargado dos Humedales Sin Fronteras – uma rede internacional de activistas ambientais dedicada aos modos de vida e ecologias multiespécies de um vasto corredor fluvial, o sistema fluvial Paraguai-Paraná.

 

Regressado a casa, comecei finalmente por me interessar pela parte científica. A minha companheira, Claire Pentecost, é uma antiga admiradora de Lynn Margulis, cuja pesquisa sobre simbiose microbial lançou as fundações biológicas da Hipótese de Gaia, também conhecida por ciência dos sistemas terrestres. A Claire tem os dedos constantemente metidos na terra, criando instalações escultóricas que exploram a rede alimentar do solo e as suas relações com a agricultura humana. Juntos estivemos envolvidos no “Continental Drift through the Midwest Radical Cultural Corridor” – um grupo itinerante de artistas que exploram a ecologia política daquele que ainda é o sistema agrícola mais fortemente industrializado do mundo (embora essa distinção dúbia esteja a esbater-se). No entanto, apesar da influência da Claire, possivelmente nenhum dos mais intrincados detalhes ecológicos teria conseguido penetrar a minha dura carapaça Marxista se dez pessoas de Chicago não tivessem tornado possível dois seminários no Anthropocene Campus em Berlim, em 2016. Naquele contexto, tivemos uma introdução mais profunda à noção de “ciclos biogeoquímicos” que ligam a actividade microbial à química atmosférica, prestando atenção ao mesmo tempo a todas as exalações vegetais, animais e humanas. Acontece que o pequeno é verdadeiramente belo. Se a Lynn Margulis tem algum mérito, foi o de ter revelado a microscopia do cosmos terrestre.

 

Regressando de Berlim com muitas ideias novas, inaugurámos o grupo Deep Time Chicago para compreender como as nossas instituições e indústrias urbanas – e, com efeito, os nossos eus biológicos e culturais – estavam activamente a gerar os perigosos pontos de viragem do Antropoceno. Este foi o momento em que o ciclo de carbono realmente saltou para o primeiro plano: a base da vida na Terra e também da morte da Terra. Em causa estavam agora questões tanto de espaço planetário como de tempo geológico, convergindo na vida quotidiana numa agitada metrópole capitalista. Percebi que a megacidade é também uma pulsação: um ritmo cardíaco colectivo. Se alguma vez ficou fascinado por um formigueiro, então o metabolismo urbano é para si. As cidades são formigueiros mineralizados daquilo que um membro do Anthropocene Working Group, Peter Haff, chama de “Technosphere.” E a tecnoesfera dá luz a uma importante questão de ecologia política: farão as formigas alguma ideia daquilo que constroem?

 

A ciência do sistema Terra trouxe-me um conhecimento mais explícito das políticas de escala que são inerentes a qualquer trabalho com sistemas de informação geográfica. Os cartógrafos estão constantemente a aumentar e a diminuir o zoom sobre o território, alternando entre representações científicas abstractas e aquilo a que chamo de “cartografia feita pelos pés”. No decorrer de projectos de mapeamento crítico acabamos por espreitar através de muitas cercas e até, algumas vezes, por trepá-las. O objectivo é ganhar conhecimento prático para a colectividade. Aos poucos percebi que os cientistas activistas que admirava – figuras corajosas como James Hansen – não fizeram apenas frente às corporações e ao Congresso americano: tinham ultrapassado a barreira da objectividade para poder levar a cabo poderosas intervenções nas políticas da ciência. Apontaram as câmaras e sobretudo os espectrómetros de massa dos satélites da NASA novamente para a Terra, não para fins de espionagem da Guerra Fria, mas para adquirir uma muito urgente compreensão daquilo que nós humanos estamos a fazer ao Planeta Azul.

 

Disse que era um marxista inveterado, e é verdade. O que a mais pequena noção de ecologia política revela não são apenas as potências de dez, mas também os poderes das grandes multinacionais, apoiados pela ciência académica juntamente com o Estado e o exército. Claro que isto é particularmente notório no caso do país ignorante em que vivo, mas esta é uma característica estrutural do capitalismo global. Os sistemas SIG que uso diariamente têm um cliente principal, que excede em muito todos os outros na capacidade de processamento, largura de banda de informação e concertação cognitiva: a indústria do petróleo. É isso que a ciência moderna tem a oferecer. Não é de espantar que tantas pessoas queiram afastar-se de tudo o que seja moderno, de tudo o que venha da Europa, do Iluminismo ou da “mitologia branca” da razão Ocidental. E quem é que pode dizer que estão errados? Não me vou agarrar à torneira pressurizada da cidade e dizer ao meu vizinho, ao meu irmão ou amante para não beberem da fonte. Mas a cosmologia terrestre apela a muitos tipos de cuidado e, à medida que a pandemia nos foi desgastando, um deles tornou-se cada vez mais claro para mim: o coração pulsante da tecnoesfera. Ele não depende do antigo conceito marxista de consciência de classe, mas sim de um novo conceito político de consciência de espécie. Toca a nossa vulnerabilidade. E apela a que intervenhamos de algum modo.

 

Os formigueiros da civilização do Antropoceno estão fortalecidos por fundações poderosas, conhecidas como indústrias de extracção. O que separa cada um de nós de cada um deles são múltiplas potências de dez, quer seja nos domínios da dimensão física, riqueza económica, conhecimento científico, influência política, violência militar ou a simples quantidade de CO2 emitido. Se não quisermos que a nossa derradeira criação colectiva se venha a tornar naquilo que a Hipótese de Gaia chama de Hothouse Earth, temos então de criar estruturas de mediação que liguem o espaço entre as formigas conscientes e a nossa “própria” infraestrutura alimentada a petróleo. Este fosso entre nós e as criações colectivas da indústria humana é a derradeira barreira a ultrapassar. Mas este fosso é duplicado por um fosso temporal, numa nova e ameaçadora época em que o ritmo da própria geologia acelerou radicalmente. É esse o perigo do batimento cardíaco de carbono que todos partilhamos. A actual geração política, ou pelo menos uma parte sua muito teimosa, tem de encontrar formas mais rápidas de dobrar o arco escalar de poder no sentido da justiça ecológica.

Uma vez que sou um produtor de media, comecei um projecto cujo fim não vislumbro, pelo menos não durante o meu tempo de vida. A versão 1.0 é concebida como um sistema de observação para a criação de conhecimento prático sobre todos os aspectos do sistema de energia contemporâneo – do carvão, gás natural e petróleo, a energias hídricas, nucleares e renováveis. A ideia é começar numa pequena escala (América do Norte) e depois tentar ir mais longe, mais profundamente nos detalhes e mais rapidamente nas consequências. Pode ser que a cosmologia terrestre não seja feita apenas de lama, mas também de máquina. Poderão ficar interessados neste projecto, ou até mesmo com desejo de colaborar, por isso vejam enquanto ainda está a arrancar. Talvez para alguns o nome diga tudo: Time To Change/Just Transition.

NOTAS
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