Plantações, passado e presente

Marta Macedo

Seguindo para sul pela estrada nacional nº 2 de São Tomé, somos recebidos pelos “florescentes palmeirais da Agripalma”. Palmeiras-andim dominam o território, criando um padrão verde surpreendente na sua regularidade geométrica. Quando o nevoeiro levanta, é possível avistar o Pico Cão Grande e o que resta da floresta nativa do Parque Natural do Obô. Apesar das palmeiras-andim crescerem na ilha há séculos, o desenvolvimento de uma indústria de óleo de palma é recente e surge com uma resposta direta ao apetite voraz por este produto a nível mundial. A par das ruínas deixadas pelo império português, estes palmeirais podem ser considerados o legado mais sinistro do colonialismo.

 

A Agripalma tem raízes profundas no passado. A origem da holding belga proprietária da Agripalma – Socfin (Société Financière des Caoutchoucs) – remonta a 1909, no Congo. Do Congo colonial, a Socfin expandiu-se para se tornar numa empresa global. Produzindo borracha, óleo de palma e café em África e no Sudeste Asiático, sobreviveu aos processos de descolonização e nacionalização das décadas de 1950 e 1960 e, apoiada por organizações supranacionais como Banco Mundial e FMI, continuou a negociar, de forma lucrativa, com os novos Estados soberanos. Nas últimas décadas, a Socfin conquistou uma reputação nada invejável relacionada com alegados abusos e más práticas: de irregularidades na aquisição de terra a más condições de trabalho, de desrespeito pelas comunidades locais a crimes ambientais

 

Na história de São Tomé, a Agripalma é apenas o último capítulo de uma narrativa de exploração de pessoas e natureza. Esta ilha é talvez o espaço perfeito para analisar a materialidade do colonialismo e do capitalismo na longa duração. Nos últimos 500 anos, a sua trajetória foi marcada por diferentes plantas – canas-de-açúcar, árvores de café e cacau, palmeiras-andim –, por diversas formas de trabalho forçado ou coagido e por um sistema produtivo específico – a plantação. Estes complexos agroindustriais destinados ao cultivo intensivo de monoculturas para exportação trouxeram ondas de destruição ecológica e de abusos sobre humanos. Mas a construção de plantações nunca foi um processo estável ou isento de atrito. Por isso, olhar para as várias dimensões desses conflitos em São Tomé, no passado e no presente, pode ajudar a abrir a nossa imaginação para a possibilidade de futuros alternativos.

 

No século XVI, a cana-de-açúcar transformou São Tomé numa plantação laboratório. As plantas da espécie Saccharum officinarum, que viajaram para oeste desde o Sudeste Asiático seguindo rotas de comércio e conquista, encontraram nestas florestas tropicais um habitat ideal. Juntamente com as plantas vieram trabalhadores qualificados e tecnologias de fabricação de açúcar, sobretudo da Madeira. Em São Tomé, os donos das plantações juntaram o capital e o conhecimento das antigas regiões produtoras de açúcar para criar algo novo, tanto em termos de dimensão como de resultado. Tirando vantagem da localização da ilha como um importante nó nas rotas do tráfico negreiro africano, estes fazendeiros importaram e empregaram pessoas escravizadas numa escala até então desconhecida no Atlântico. A experiência teve consequências duradouras. A escravatura e as práticas de desumanização de homens e mulheres que a tornaram possível ajudaram a consolidar ideias mais antigas sobre diferença e hierarquia racial que sobreviveram à abolição e que vieram a definir as relações de trabalho nos séculos seguintes. Neste mundo da plantação, os africanos tornaram-se negros e a cor negra passou a estar associada à inferioridade e à corrupção moral.

 

Na década de 1560, os sessenta engenhos de São Tomé, com mais de 6000 trabalhadores escravizados, exportavam cerca de 2000 toneladas de açúcar. Esse volume representava mais de metade da quantidade total de açúcar que chegava a Antuérpia, o centro da refinação de açúcar na Europa, fazendo da ilha o mais importante fornecedor mundial. A produção de açúcar nestas quantidades dependeu da extração de trabalho e de recursos da floresta em níveis sem precedentes.

 

À medida que as plantações cresceram, os trabalhadores revoltaram-se e escaparam à disciplina e violência do regime açucareiro, inaugurando modos de luta adotados por trabalhadores escravizados em todo o mundo. Em São Tomé, homens e mulheres fugiam em massa das plantações de açúcar, especialmente quando as condições de vida e o abastecimento alimentar estavam em risco. Escapando para as montanhas e organizando-se em espaços seguros conhecidos como mocambos, os trabalhadores atacavam as plantações e ameaçavam as rotinas do fabrico do açúcar.

 

O açúcar teve ainda um outro inimigo insuperável: o clima. Na ilha, a secagem de pães-de-açúcar em condições de elevada humidade revelou-se particularmente difícil e o produto que resultava desse processo foi sempre considerado de fraca qualidade. No final do século XVII, os plantadores perceberam que poderiam aspirar a melhores lucros e menos conflitos num clima mais moderado, e mudaram-se, gradualmente, para o Brasil. As plantações de açúcar do Novo Mundo foram moldadas a partir desta primeira experiência.

 

Quando o açúcar cruzou o Atlântico para o Brasil e para as Caraíbas, São Tomé tornou-se um importante entreposto do tráfico negreiro transatlântico. Os mesmos navios que transportaram pessoas escravizadas de África para as Américas trouxeram, no regresso, as primeiras árvores de café e cacau da Baía para São Tomé no final do século XVIII e início do século XIX. Essas plantas não foram transformadas imediatamente em culturas de rendimento. Foi apenas em 1850, com a abolição efetiva do tráfico para o Brasil, que os antigos comerciantes investiram o seu dinheiro em terra, adaptando as tecnologias agronómicas e as práticas de gestão de trabalho escravo das plantações de café brasileiras. Em São Tomé, a produção de Coffea arabica foi sempre limitada, sobretudo em comparação com a produção brasileira, mas as 2000 toneladas que seguiram todos os anos para Lisboa no início da década de 1870, protegidas por tarifas especiais, alteraram os padrões portugueses de consumo de café. Mas sobretudo o café criou a oportunidade e as estruturas para a revolução do cacau.

 

A árvore da espécie Theobroma Cacao fez de São Tomé um protagonista global do mercado do cacau. Em 1905, a ilha produzia cerca de 1/6 das 140.000 toneladas de cacau processadas anualmente pela indústria do chocolate na Europa e nos EUA. Este cacau era cultivado em grandes plantações altamente capitalizadas e tecnologicamente sofisticadas. Para plantar, colher, fermentar e secar o cacau, os plantadores precisavam de milhares de trabalhadores, mas a escravatura já não era uma opção. O cacau introduziu, no império português, um novo sistema de exploração de trabalho racializado: a servidão por contrato. De 1876 a 1904, 66000 homens e mulheres angolanos chegaram a São Tomé com contratos de trabalho de cinco anos. Na ilha, foram submetidos a um regime de trabalho semelhante à escravatura. Tal como noutras regiões, homens e mulheres, de modo individual ou organizado, subverteram o funcionamento destas máquinas de produção bem oleadas. Para além dos conflitos laborais, um inseto minúsculo ameaçou as plantações de cacau.

 

Selenothrips rubrocinctus, um inseto que se alimenta da seiva de folhas jovens e destrói esses órgãos de fotossíntese e transpiração, foi identificado, pela primeira vez, em São Tomé no final da década de 1910. O Trips não é uma praga primária. Ele é normalmente o efeito secundário de alterações físicas no ambiente, capazes de perturbar o normal metabolismo das árvores. O desbaste seletivo da floresta e o cultivo de cacaueiros sob as espécies sobrantes foi o método comumente usado nas plantações de São Tomé até ao início do século XX. Os plantadores, procurando maior rentabilidade, começaram por adotar a prática do desbaste completo da floresta primitiva plantando os cacaueiros sob novas árvores de sombra. Daí ao cultivo de cacau sem sombra foi um pequeno passo. A exposição excessiva ao sol, apesar de aumentar a produtividade dos cacaueiros, reduziu a humidade do solo, enfraqueceu as defesas destas árvores e criou as condições perfeitas para o desenvolvimento do Trips. Em meados da década de 1920, um terço dos cacaueiros da ilha já não produzia frutos. A produção continuou a diminuir à medida que as árvores envelheciam, as plantações definharam ao longo dos anos até à independência de São Tomé, em 1975, e desapareceram depois disso. Após uma reforma agrária falhada, a floresta, gradualmente, conquistou os campos de cacau abandonados.

 

A Agripalma chegou a São Tomé em 2009 e apoderou-se de 5000 hectares de terreno, à semelhança de um abutre sobre uma carcaça. As agroindústrias do sector do óleo de palma estão permanentemente à procura de novos espaços para crescerem. Mantendo vivas antigas relações de dependência traçadas segundo linhas raciais, elas aproveitam-se de estados fracos e pessoas vulneráveis. A sua qualidade necrófaga advém também do facto de a Elaeis guineensis, de onde o óleo é extraído, poder efetivamente ocupar plantações mortas. Ao contrário de outras culturas, esta cresce com sucesso em florestas secundárias.

 

A área ocupada pelas palmeiras-andim em São Tomé parece modesta, sobretudo quando comparada com os 200.000 hectares que a Socfin “desenvolve” em todo o mundo, mas o seu impacto local é enorme. Consumindo cerca de 10% das terras agrícolas, a indústria emprega menos do que 1% da população trabalhadora da ilha. Para abrir espaço para a Agripalma, o estado expropriou terras de pequenos e médios agricultores, sem compensação, e fechou os olhos à ocupação de áreas florestais na zona de proteção do Parque Natural. A perda de biodiversidade e a ameaça colocada às espécies de aves únicas e em perigo de extinção ainda estão por avaliar. O governo de São Tomé também concedeu à Agripalma o monopólio da produção de óleo de palma. A fábrica local exportou as primeiras 500 toneladas em Dezembro de 2019. No entanto, as suas instalações foram concebidas com planos mais ambiciosos: são capazes de processar até 10.000 toneladas de óleo por ano.

 

Em 2009, a Agripalma lutou pela concessão de terrenos na ilha do Príncipe. A população do Príncipe insurgiu-se contra o projeto. Mas sobretudo o projeto colidiu com a iniciativa de outros grupos de investimento privado. O fundo de capital de risco sul-africano HBD (Here be dragons) está lentamente a transformar o Príncipe num dos destinos de ecoturismo mais exclusivos do mundo. Como as plantações de palmeiras-andim não oferecem o cenário ideal para estes resorts de luxo, a Agripalma perdeu a batalha.

 

As plantações de palmeiras-andim são a reiteração de um sistema secular de exploração do ambiente e pessoas. O que experiências anteriores nos dizem é que os ecossistemas criados por estes regimes produtivos criam também as condições para a sua própria destruição. Poder-se-á antecipar o futuro das plantações de palmeiras-andim se tivermos em conta a vida comercial limitada destas árvores. Após 25 anos, à medida que os palmeirais se tornam menos produtivos, com frutos mais difíceis de colher e mais suscetíveis a pragas, elas são abandonadas. Ou replantadas, aumentando a despesa. Talvez mais cedo do que tarde, as palmeiras-andim venham a ser, tal como a cana-de-açúcar e as árvores de cacau, coisas do passado. O que pode surgir dessas ruínas é uma possibilidade em aberto.

NOTAS
MARTA MACEDO

Investigadora de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no âmbito do projecto ERC "The Colour of Labour: racialized lives of migrants". A sua pesquisa atual aborda a circulação de sistemas de plantação entre o Brasil, São Tomé, Congo Belga e Camarões, cruzando abordagens da história da ciência e da tecnologia, do trabalho, da raça e do capitalismo.

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