Residências TERRA Ourique
Monte das Doceitas 8–15 junho 2020
Participantes: Marta Lança · Rita Natálio · Ana Rita Teodoro · Joana Levi · Bruno Caracol · Inês Catry · Miguel Rego · Samuel Melro · João Madeira · Luísa Homem · Ana Lúcia Nobre
Neste encontro, foi discutido o modelo político-económico de intervenção na paisagem e as drásticas transformações territoriais que acarreta, sobretudo a partir dos modos de produção trazidos pelos regadios do Alqueva, bem como as suas graves consequências para os solos e de razia à biodiversidade. Os temas em debate abrangeram as técnicas de produção superintensiva (olival, amendoal e estufas) e as implicações físicas e laborais da agricultura industrial; posse e usufruto da terra; marcas humanas na paisagem ao longo dos tempos (história e arqueologia), ao longo do espaço (solos, montado, seca, transumância e criação de animais): a construção de comunidades e memória; a desertificação; a extração de trabalho migrante; ou a falta de água e de gente.
PROGRAMA
Esta herdade é uma propriedade agrícola que conta atualmente com 2500 ovinos e 80 vacas de raça alentejana. O engenheiro agrónomo João Madeira integra os apenas 12% de produtores portugueses com formação agrícola. Vive em Beja e trabalha em Mértola. Depois de vencido um longo processo para o reconhecimento das ovelhas campaniças como reserva genética, Madeira introduziu a identificação eletrónica dos animais (um chip eletrónico dentro de uma das bolsas gástricas das fêmeas). A ovelha campaniça é uma raça autóctone, apurada desde o tempo do avô de João Madeira e adaptada à escassez de recursos. É pequena – as fêmeas pesam 40 quilos na sua fase mais pesada –, mas, ao contrário de um avantajado borrego irlandês, que dificilmente aguentaria um verão alentejano, a campaniça resiste e ganha também no que se refere ao sabor. Por enquanto, é explorada em linha pura, o que significa que não é para venda comercial, apenas para constituição de uma base suficiente da sua espécie. Das cinco mil fêmeas inscritas, metade vive na herdade de João Madeira. Com o irmão veterinário, outro sócio da empresa, vai registando a infertilidade ou os problemas de parto, entre muitos outros dados relacionados com a qualidade e produtividade dos ovinos. A sociedade agrícola Vargas Madeira segue procedimentos de caráter cada vez mais tecnológico.
O arqueólogo Miguel Rego, responsável em 2015 pela abertura do Núcleo dos Aivados/Aldeia Comunitária do Museu da Ruralidade, levou-nos à Herdade dos Aivados, uma das mais antigas experiências comunitárias de toda a região do Alentejo. Criada por volta do século XVI, teve, ao longo da sua história, importantes conflitos institucionais para manter a legitimidade e o domínio jurisdicional sobre esse seu território. A comunidade gere um território de cerca de 400 hectares, espaço ocupado por culturas de sequeiro, leguminosas e pastos para o rebanho comum, para além das hortas comunitárias, pequenos lotes de cerca de 120 m2 que cada um dos habitantes pode trabalhar para proveito próprio. Na herdade é visível o antigo terminal ferroviário da Estação de Ourique, para além de uma mina de britagem de pedra cuja renda sustenta ainda várias regalias dos moradores da aldeia: livros escolares gratuitos para as crianças, subsídio para o almoço de Natal, apoio para funerais, etc. Na visita, para além de tomarmos contacto com toda esta experiência representada no museu local, foi ainda possível visitar um moinho de água, atualmente pertença de um privado que não vive na zona, e que é o único que resta dos vários moinhos desta natureza que existiam na ribeira dos Aivados.
As biólogas e investigadoras Inês Catry e Marta Acácio apresentaram o seu trabalho na Reserva da Biosfera de Castro Verde, de grande importância para muitas espécies de aves hoje ameaçadas. Foi debatida a "pseudoestepe cerealífera", um ecossistema agrícola moldado pela ocupação humana que se carateriza pela quase ausência de árvores e no qual a rotação do cultivo extensivo de cereais e pousio em terras de grandes dimensões resultou num contexto único para aves estepárias como a abetarda, o sisão, o francelho ou o rolieiro, entre outras. Discutimos a manutenção deste sistema agrícola de rotação, hoje economicamente marginal e altamente dependente da manutenção de subsídios europeus aos agricultores para que estes mantenham as actividades agrícolas, e sem as quais a estepe cerealífera desaparecerá, pondo em risco a sobrevivência destas aves. Uma das espécies mais carismáticas desta área é o francelho, um pequeno falcão migrador que vai de África ao Campo Branco para se reproduzir. Visitámos uma colónia da espécie na área de Casével e a bióloga Inês Catry apresentou um historial relativo à investigação produzida nas últimas décadas em torno desta espécie, bem como aos esforços de conservação para recuperar a sua população. Fez-se uma pequena sessão de anilhagem de crias de francelhos, técnica usada pelos investigadores para identificar as aves individualmente e conhecer a sua ecologia e biologia.
No circuito arqueológico do Castro da Cola, Samuel Melro ampliou a leitura da paisagem a partir das permanências e ruturas do povoamento humano desde há 5 mil anos até aos nossos dias, considerando as teorias de um Antropoceno lento, discutidas pelo antropólogo James C. Scott. A identidade coletiva no território é assinalada por marcos na paisagem, dos túmulos funerários pré- e proto-históricos às muralhas da Cola e às marcas de suas celebrações religiosas e rituais, dos vestígios da frugalidade do quotidiano à complexidade das estelas com a antiga escrita (indecifrada) do Sudoeste (2600 anos a.C.). Discutimos ainda as formas como o ordenamento político e económico foi ao longo dos séculos moldando o território, criando tensões, perdas ou resistências e identidades.
Nesta visita, o foco foi a produção, comércio, importação e exportação de azeite, assim como a cultura e comercialização de amêndoa, tendo em conta os modelos de produção superintensiva e os processos de exportação de grandes quantidades de azeite desta produção para Espanha e Itália.
Visitámos a Fonte de Água Santa de São Miguel. Quando, em 1714, se iniciaram as obras de construção da Igreja de São Miguel dos Gregórios, perto de Casével, esta fonte apareceu nas proximidades. O povo alentejano considerou-a “fonte de milagre”, atribuindo às suas águas poderes terapêuticos para diversas doenças. “[…] junto da Igreja do Senhor Sam Miguel se houve aberto e descoberto uma fonte de milagre, que Deus Nosso Senhor, por intercessão do Santo a essa fonte concorre muita gente com algumas doenças e achaques e se divulga serem sãos por virtude da água da dita fonte em que se lavam […]” – ficou registado num documento de 22 de julho de 1714, da Câmara de Castro Verde.
APRESENTAÇÕES NO MONTE DAS DOCEITAS
Nesta apresentação discutimos práticas e metodologias artísticas a partir de três projetos: 1) Marte, projecto coletivo que Bruno Caracol está a desenhar com Pavel Tavares e Marie Fages, trata de olhar para as transformações da paisagem a partir da terraformação de Marte; 2) Quando a Matilha Cerca o Fogo é a expressão atual de uma pesquisa que Caracol desenvolve em torno dos fojos do lobo, continuada numa residência no Campo do Gerês para o evento Rural Vivo. Mostrou o vídeo O Inimigo (Fojo do Germil), sobre a oposição que se expressa na relação com os lobos nas regiões em que ainda existem e as formas como a paisagem pode ser usada como armadilha; 3) Subterrâneo, um projeto sobre o livro Fragmento de História Futura, de Gabriel Tarde, que começou na residência Lugar a Dudas e que vai continuar em Minde, cruzando a história da espeleologia com a especulação utópica de Tarde, problematizando a ideia de uma humanidade solitária.
O filme traça o esboço de uma mulher aventureira que atravessa o século XX até aos dias de hoje, guiada pela paixão da investigação geográfica. O filme circula entre os inúmeros espaços-mundo percorridos pela geógrafa e os reservados espaços-casa que acolheram a sua vida privada. Daveau escreveu: “Não há ciência nem progresso no conhecimento sem amor, sem paixão, sem identificação, mesmo quando se trata de um tema aparentemente desprovido de vida, como a evolução de uma vertente ou a génese de um aguaceiro. Pode-se, talvez, aplicar rotineiramente uma técnica com pura objectividade, não se pode, com certeza, descobrir algo de novo sem que o investigador se implique por completo no tema que tenta elucidar.”
A artista e ativista ambiental Ana Lúcia Nobre deu-nos conta das acções de regeneração do montado, nomeadamente a plantação de 500 árvores no seu monte, Cuncas Novas. Quanto ao movimento Vamos Manter o Alentejo Vivo, o objetivo é a criação de uma agrofloresta alentejana, um refúgio para a fauna selvagem, a regeneração do solo, o incremento da biodiversidade e a diminuição dos efeitos causados pelas alterações climáticas. Explicou um pouco como se faz permacultura e mostrou alguns exemplos de plantas silvestres e ervas aromáticas da região.
A bailarina e coreógrafa Ana Rita Teodoro, artista convidada a desenvolver uma proposta artística no contexto do Terra Batida, apresentou uma peça de 2013, intitulada Assombro, na qual mostra uma série de quadros vivos, imagens fixas, e a canção emerge de uma voz deslocada da sua boca. Assombro tenta compreender, através da dança e da reativação de cantos tradicionais portugueses, os fantasmas que nos assombram hoje. Chama-os, ouve as suas vozes. Orientadas nas canções de mulheres, foram selecionadas a partir dos registos do etnólogo Michel Giacometti (anos 60/70) e do projecto atual de Tiago Pereira, A música portuguesa a gostar dela própria. Crise de identidade como meio de transgressão das condições femininas. Que lugar resta para as canções do passado, em perigo de serem esquecidas nos arquivos? Canções engolidas pelo tempo reivindicam a sua voz actual.